Conto: Uma família codependente
Conto: Uma família codependente
Um jovem casal, Letícia e Marcos, dedicaram suas vidas para cuidar de seus filhos, Felipe e Marisa. Eles deixaram de cuidar dos seus interesses para se doarem totalmente aos cuidados destes. Até mesmo o relacionamento conjugal foi atingido, afinal, todo o sacrifício era pouco para garantir um futuro melhor para os seus amados filhos.
Horas extras no trabalho, vendas de dias das suas férias, acreditavam que todos esses sacrifícios seriam compensados no futuro…
Os filhos cresceram, entraram na adolescência e, acostumados a sempre escutarem “sim” dos seus pais, continuavam cobrando destes cada vez mais conforto e bens materiais. Felipe, o mais velho, já com os seus dezesseis anos, cobrava dos pais a liberdade de adulto. Exigia ter a chave da casa para chegar na hora que bem entender. Queria dinheiro para sair com sua namoradinha e já estava se achando no direito de sair com o carro do pai, afinal, ele aprendeu a dirigir com 13 anos e o seu próprio pai o ensinou.
Felipe já começava a chegar bêbado em casa, principalmente nos finais de semana. Seu rendimento escolar já estava comprometido, os pais não sabiam, mas Felipe começou a matar algumas aulas para ficar conversando e bebendo com “os amigos” na pracinha da igreja.
Marisa com seus 13 anos, por outro lado, sempre era uma garota exemplar, percebia o desvio de conduta do irmão e procurava alertar os seus pais, que, ainda preocupados com bens materiais não conseguiam escutar sua filha.
Numa manhã de terça-feira, o pior aconteceu. A orientadora da escola de Felipe liga pedindo para o responsável comparecer.
A mãe, senhora Letícia esteve presente nesta reunião e se deparou com a grande tragédia: “Seu filho estava usando drogas na escola” – disse a orientadora.
O chão desapareceu, dona Letícia ficou pálida, não conseguiu acreditar naquilo que acabara de ouvir. Alguns minutos de silêncio… Não conseguiu conter suas lágrimas… Levantou-se de forma agressiva e disse:
– Como a senhora tem coragem de falar uma mentira como esta? Meu filho jamais faria uma coisa dessas. Vou processá-la por estar caluniando meu filho.
Dona Letícia saiu sem se despedir e não conseguiu mais falar com ninguém. Voltou para casa deixando-se ser levada por sentimentos contraditórios: raiva, decepção, ódio, frustração e o pior, a grande pergunta: “Onde foi que eu errei?”
A revolta com a escola, com o bairro veio com o sentimento de proteger seus filhos de todas estas ameaças. Meu filhinho não poderia estar fazendo aquilo. O que fazer? Conversar com ele? Falar com o pai? Mudá-lo de escola? Mudar de bairro, de cidade? Procurar um médico, um psicólogo?
Dona Letícia se tranca no quarto e chora compulsivamente. Todo o seu sonho de construir um lar ideal estava se acabando. Sua solidão era tamanha que todos os familiares começaram a se preocupar. O que estaria acontecendo? Seu marido começou a pressioná-la. Sua filha Marisa, apesar dos seus 13 anos, também estava desconfiada. A família estava totalmente afetada pela notícia: “Seu filho está usando drogas.”
Outra pergunta pairava nos seus conflitos: “Como falar um absurdo deste para o Marcos? ”Qual seria a reação dele já que sempre foi um pai responsável, presente e que nunca deixou faltar nada para seus filhos?
Após o susto inicial, Dona Letícia se recompõe e toma a coragem de comunicar ao seu marido, Marcos, uma das piores notícias que uma esposa pode dar ao seu companheiro: “Nosso filho está usando drogas”.
Marcos ficou muito assustado e não acreditou naquilo que acabara de ouvir e exclamou:
– Isto não pode ser verdade!
Antes mesmo de sua esposa terminar de contar os detalhes, Marcos, visivelmente irritado, saiu em direção ao quarto de Felipe. De forma violenta e agressiva, Marcos descarregou uma série de palavrões ao seu filho:
– Seu safado, sem vergonha, maconheiro, etc. – chegando a agredi-lo fisicamente.
Marisa, irmã mais nova de Felipe, sai desesperada para a rua em busca de socorro. Dona Letícia, tenta segurar seu marido procurando proteger seu filho e nada. A confusão agora estava completa. Uma família ameaçada por causa do uso de uma droga ilegal de um dos seus membros: Felipe.
Quando Marisa retorna acompanhada de um vizinho, sua mãe e seu pai estavam discutindo no quarto:
Marcos: – foi por sua culpa que seu filho entrou nessa você sempre fez as vontades dele.
Letícia não deixa por menos e responde:
– Você sempre se preocupou apenas com o seu trabalho e nunca teve tempo para estar presente na vida dos meninos.
Após alguns longos minutos de agressões mútuas, Marcos resolve sair de casa sem dizer para onde iria. Dona Letícia fica no quarto em prantos, totalmente entregue diante de uma realidade pela qual não estava preparada: seu filho, usuário de drogas.
O vizinho, Sr. João, amigo da família há muitos anos, foi conversar com Dona Letícia. Falou que ele já tinha passado por aquela experiência e que atualmente, participava de um grupo de apoio a familiares e dependentes de álcool e outras drogas do Amor Exigente. Convidou-a para a próxima reunião. Após alguns minutos, Dona Letícia já se encontrava um pouco mais calma, mas tinha dificuldades de admitir esta possibilidade: de ter que participar de um grupo de apoio para familiares de dependentes de drogas.
Felipe, sem ninguém perceber, também foi para a rua encontrar com seus “amigos”, afinal, o “bicho pegou dentro de casa”. Fumou mais um baseado e tomou alguns copos de vinho para aliviar a tensão e a consciência pesada de ser a causa de tantos conflitos na família.
Da mesma forma, Marcos foi para o barzinho aliviar aquele sofrimento e andou tomando algumas garrafas de cerveja, afinal, ninguém é de ferro!
Marisa, uma garotinha de apenas 13 anos ficou totalmente apavorada sem saber o que fazer. Sr. João conversou um pouco com ela também.
Naquela noite, Dona Letícia teve que dormir sob efeito de tranquilizantes. Felipe não voltara para casa e não comunicou onde passaria a noite. Marcos chegou de madrugada, alcoolizado e foi dormir sem trocar uma palavra com a sua esposa. Letícia ficou na Internet, conversando na sala de bate-papo até o sono chegar… Enfim, todos estavam doentes e essa doença tinha um nome: “Codependência”.
Passaram-se alguns meses e Felipe tentou controlar o uso de drogas. Afinal, ele tinha de convencer seus familiares que sabia o que estava fazendo, afinal ele não era dependente. Usava a droga apenas de vez em quando em festas e finais de semana. Beber para ele, isto era normal. Todo mundo fazia isto, afinal, acreditava que o álcool não era uma droga. Continuou bebendo com frequência e a família achava normal.
O Sr João, aquele do grupo de apoio da Família de Caná, nem era lembrado mais. Para que expor publicamente um problema da família? Tudo parecia bem, até que uma nova bomba explodiu: um telefonema de madrugada. Aquela sexta feira ficou marcada na vida de Marcos e Letícia:
_ É da casa do garoto Felipe?
D. Letícia respondeu:
– Sim, aconteceu alguma coisa? Perguntou aflita.
A pessoa se identificou como o detetive da delegacia de polícia e comunicou a Dona Letícia que seu filho estava detido por traficar cocaína.
Dona Letícia, paralisada, não conseguiu falar mais nada, não conteve as lágrimas e o detetive continuava a dar aquela péssima notícia:
– Seu filho foi pego em fragrante com uma quantidade razoável de drogas e estava vendendo para um grupo de jovens. Como ele é menor de idade, precisamos de uma pessoa responsável para responder o inquérito.
Marcos, pai de Felipe pega o telefone de Letícia e escuta toda a história do policial. Imediatamente, desesperado, o casal vai em direção a delegacia. Marcos liga para um amigo que é advogado e solicita os seus serviços para soltar Felipe. Após a abertura do Inquérito e o pagamento da fiança, Felipe foi solto na responsabilidade dos seus pais.
Retornando para casa, o silêncio profundo se abateu no carro. A decepção, a vergonha, a dor, o sentimento de traição e a grande dúvida: “onde foi que eu errei?” Ninguém tinha forças para dizer uma só palavra. O silêncio da madrugada cortava aquelas almas sofridas e destruídas pela droga.
Quando eles chegaram a casa, Marisa, a irmã de Felipe estava acordada desesperada sem saber o que tinha acontecido com o irmão. O silêncio foi rompido com as palavras de Marcos:
– Vê se você aprende com isto seu traficante!
Felipe cabisbaixo não respondeu nada. Simplesmente olhou para o seu pai e foi para o quarto.Sua mãe entrou para o quarto para chorar. Chorou até ao amanhecer do dia, quando o cansaço a fez dormir um pouco. Marcos ficou assistindo TV até dormir no sofá, ao lado da sua cervejinha.
Ao acordar, todos pareciam ter levado uma surra durante aquela noite.
Marisa teve a coragem de iniciar o diálogo e perguntou:
– Gente! Vamos procurar de novo o Sr. João para pegar o endereço da reunião de apoio! Estamos todos precisando de ajuda. Eu não aguento mais viver neste inferno!
Assim, depois de muito sofrimento, a família começou a participar das reuniões. Felipe resistiu no início, mas depois, resolveu também participar.
Hoje, Felipe se encontra internado numa CT Comunidade Terapêutica, recuperando sua vida, sua autoestima, seus estudos e sua espiritualidade.
Sua família continua participando das reuniões de apoio, dos grupos terapêuticos e do atendimento psicológico, e a cada dia todos estão mais empenhados para sair da codependência e da dependência, além de estarem ajudando outros familiares que estão passando pelo mesmo sofrimento, eles estão sendo ajudados, crescendo juntos em busca da sobriedade e da paz.
Obs.: este conto foi escrito
baseado em fatos reais de
centenas de famílias que procuram
os grupos de apoio a familiares de dependentes
e no meu consultório particular.
Os nomes são fictícios e não
representam nenhuma família
em particular, mas sim,
uma realidade de todas as
famílias codependentes.
Diante da história de Letícia, Marcos e seus filhos, temos que levar em consideração alguns aspectos importantes:
Uma realidade social
Infelizmente, a cada dia este fato está acontecendo em muitas famílias. São comuns os pais diante de uma notícia como esta: “Seu filho está usando drogas”, se sentirem culpados e traídos. É preciso entender que, numa sociedade onde os meios de comunicação invadem os nossos lares e escolas, a influência dos pais na educação dos filhos está cada vez menor. Assim, se existem culpados de alguém estar usando drogas, não são os pais, mas sim, toda a sociedade materialista que prioriza o ter ao invés do ser. Ter o carro zero, a roupa da moda, o prazer sem limites e responsabilidades, etc. Os pais de alguma forma são vítimas também destes valores sociais, bem como o usuário de drogas.
Vítimas, mas responsáveis
Apesar de vítimas, tanto a família codependente, quanto o próprio dependente são responsáveis para assumirem sua condição de portadores desta doença e, principalmente, serem responsáveis pelo seu próprio tratamento. Não adianta entrar no jogo de acusações e busca de culpados. Partir para ignorância e ofensas não vai ajudar em nada, pelo contrário, vai piorar a situação, aumentando os conflitos familiares, agravando ainda mais o problema. Segundo a OMS (Organização Mundial de Saúde) a dependência química é uma doença, portanto não é caso de falta de vergonha, malandragem, etc. Ninguém escolhe ser dependente da mesma forma que não escolhe ter um câncer.
Não fazer tempestade em copo d’água
Diante da notícia que alguém da família está usando drogas, temos que tomar cuidado para não fazermos tempestade em copo d’água. Estar usando drogas não significa necessariamente um caso de dependência. Porém, não podemos também negligenciar acreditando que é normal este fato e que esta fase vai passar. Precisamos tomar medidas sensatas e coerentes com a situação real e não a situação imaginária.
Portanto, é fundamental procurar um profissional da saúde (médico ou psicólogo) que tenha uma formação específica para tratar deste assunto. Grupos de ajuda mútua para familiares e dependentes são fundamentais para auxiliarem no tratamento, além de buscar informações sobre o assunto através de livros, jornais, revistas e palestras.
O profissional, bem como o grupo de apoio, vai acolher a dor da família, conhecer a real situação e só assim será possível contribuir para que a família possa buscar uma maneira mais eficaz no enfrentamento desse problema.
Claudio Martins Nogueira – Psicólogo Clínico