Prontuário do meu pai
“Meu pai, 79 anos, estava com pressão alta e o levei para a emergência do hospital.
Ele foi conduzido para a enfermaria e fiquei com o seu celular e a sua carteira.
Na doença, não existe posses.
Era o seu responsável pela primeira vez na vida.
Precisava preencher o prontuário médico.
A atendente me alcançou a folha alertando que se tratava de perguntas simples.
Peguei a caneta e mordi a tampa, em vez de deslizar a tinta na página.
– Biotipo sanguíneo?
Eu não sabia.
– Alergia a medicação?
Eu não sabia.
– Já teve sarampo, caxumba, catapora?
Eu não sabia.
– Realizou alguma cirurgia?
Eu não sabia.
– Vem usando medicação?
Eu não sabia.
Vi que eu não conhecia o meu pai.
Ele que me conhecia de cor e teria facilidade em preencher qualquer ficha a meu respeito.
Mesmo possuindo quatro décadas e meia de oportunidades, o pai surgia como um desconhecido íntimo.
Um anônimo.
Eu não me esforcei em descobrir quem me cuidava durante todo esse tempo.
Nossa relação foi uma via de mão única.
Terminei reprovado no Teste de Filho.
Deixei o teste em branco, para o meu constrangimento.
A atendente tentou disfarçar o desconforto:
– Depois perguntamos para ele.
O prontuário médico tornou-se o meu obituário filial.
Eu me dei conta de que nunca me preocupei em desvendar quem habitava a função “pai”, em determinar as suas escolhas, em revelar a pessoa atrás da roupagem familiar.
Meu pai veio com uma encomenda pronta quando nasci, e jamais desfiz o embrulho para buscar o que havia dentro.
Não desfrutava de condições de responder nada por ele, pois o reconhecia como eterno provedor, uma fortaleza inexpugnável, onde me socorria em caso de necessidade.
Só eu pedia ajuda, não ajudava.
Só eu cobrava afeto, não devolvia.
Só eu esperava recompensas, não observava também a sua carência e sua fragilidade.
Não questionei o que ele viveu antes de mim.
Não sabia se ele teve cachorro, qual o nome, se ele sofreu com a perda do mascote, se sofria castigo na infância, qual o seu melhor amigo, se dançava nas festas da escola ou permanecia encostado na parede, se nadava, se andava de bicicleta, qual a carreira que sonhou, qual o seu pior trauma, qual a sua maior felicidade, se içou pandorga, se pescou, se participou de acampamento, com o que brincava, se jogava futebol, qual a sua posição, se terminava como goleiro por não fazer gol, se dividia o quarto com os irmãos, com qual idade começou a ler e a escrever.
Eu simplesmente me conformei em ser o seu filho, jamais fui seu amigo.”
Fabrício Carpinejar é jornalista, poeta e cronista.
Texto originalmente publicado na Revista Donna.