O boicote do dependente e o sentimento de culpa
Quero começar explicando o significado de boicote que é um ato de abstenção voluntária e intencional de usar, comprar ou lidar com algo. Já a culpa é a responsabilidade dada à pessoa por um ato que provocou prejuízo material, moral ou espiritual a si mesmo ou outra pessoa.
Certo dia, um dependente químico resolveu se tratar, pois percebeu que estava perdendo a sua essência, personalidade, pessoas e bens materiais. Ao iniciar o tratamento, vários sentimentos ainda o acompanhavam em todo o processo, a cada ida ao psicólogo, a cada leitura sobre a doença, a cada roda de amigos quando os temas mencionados eram álcool e outras drogas, a cada reunião do grupo de apoio. Sua mente se tornou um lugar de diálogo entre duas vozes. A voz do boicote e a voz da culpa.
– Qual seu objetivo com o tratamento? Perguntou o boicote. O dependente de pronto, respondeu:
– Quero sair dessa e voltar a levar a vida que eu tinha antes. A culpa então interviu:
– Que vida? A mesma que você vivia infeliz, buscando justificativas para os seus fracassos, fantasiando coisas que queria ter e nunca conseguiu alcançar? Aquela em que seus objetivos viviam numa escuridão?
Cabisbaixo, o dependente respondeu com muita dificuldade:
– Sim, acho que quero voltar para essa vida.
– Está vendo boicote, ela ainda tem dúvida. Ele ainda não se decidiu se a vida que possuía antes era melhor do que a de agora, disse a culpa.
– Meu caro dependente, continue como está, não leve tão a sério esse tratamento. Pare de sofrer com tudo isso e apenas continue seguindo em frente, numa realidade paralela na qual você ainda consegue ter seus ganhos. Pense comigo: você se formou, você trabalha e ganha seu dinheiro para usar sua droga quando quiser, a sua família ainda acredita em você. Porque largar tudo isso para voltar atrás?
Incomodado com o discurso do boicote, ele disse em alto e bom tom:
– Quando eu disse que queria sair dessa, me refiro a esse buraco onde entrei (mundo das drogas), saindo dele posso voltar ao meu passado e reconstruir tudo que deixei de fazer. Não é literalmente viajar no tempo, mas correr contra esse tempo que foi passando e que eu não consegui fazer nada do que eu gostaria. A culpa então o questiona:
– Você sente culpa de não ter conquistado nada disso, você apenas tenta compensar tudo isso mas esquece que a história já foi escrita. Então o dependente diz:
– Se o personagem tiver capacidade de mudar, a história também pode mudar. Não consigo voltar ao passado para mudá-lo, mas posso pegar as lições inacabadas e reescrevê-las de um novo jeito. A culpa se cala, então o dependente continua:
– Boicote e você sabe porque isso tudo vale a pena? Porque você me fez esquecer em todo esse tempo em que usei drogas, da pessoa que eu fui antes da droga e de algumas características que foram apagadas. Sabe como vou encontrá-las?
Ao ver que o boicote ficou sem resposta, o dependente pega a culpa e o boicote pelas mãos e os leva para frente de cinco portas que estão fechadas em sua mente. Então ele diz:
– Cada uma dessas portas esconde um dom que ficou aprisionado todo esse tempo nos quais eu tentei boicotar e com isso comecei a me culpar por tudo que não consegui fazer. A primeira porta contém o dom do carisma, com ele posso reconquistar meus amigos, minha família e todos que se afastaram de mim por todo esse tempo. A segunda porta contém o dom da inteligência que me permite pensar em vários modos, jeitos e ideias de conquistar tudo aquilo que não fui capaz até então. A terceira porta contém o dom do apreço por animais, aos quais posso compartilhar meu carinho, cuidado e atenção. Na quarta porta está aprisionado o dom de lidar com crianças, de sentir a pureza, a responsabilidade de ensinar e de ser espelho para elas. E a última porta contém o dom da arte de transformar tudo isso que vivi e senti em um texto, uma fala, uma live, um desabafo de uma forma única, personalizada e autoral, afinal embora a história possa ser a mesma, cada personagem tem o seu jeito de contar.
O dependente abriu os olhos e percebeu que tudo isso tinha sido apenas um sonho, sua mente acordou vazia e tranquila. Os sentimentos de boicote e culpa haviam sido libertados.
Luís Henrique